Eu apaguei.
Parecia que um trator havia passado por cima de mim. E não porque estava cansado, mas acordei todo
dolorido.
Quando eu levantei da cama
e olhei para o colchão, tive certeza de que o mesmo se tratava de uma herança da família real e que estava sendo transmitido por testamento, de geração em geração, desde Dom João VI.
Esfreguei os olhos, me
espreguicei e reparei na namorada. Enrolada como um caracol com as cobertas,
inclusive com a cabeça escondida. Estava linda e não
queria atrapalhar aquele sono angelical.
Foi só virar as costas e ir em direção ao
banheiro que o “angelical” sumiu e um estrondo vindo das profundezas do
Inferno, me fez gelar a espinha e rezar, como há muito não fazia.
- Onde você vai?
- Bom dia amor... Vou ao...
- Onde você vai?
- Ao banheiro, posso?
- Que frio que fez neste inferno.
Achei meio contraditório, porque não imagino um inferno
fazendo frio. Mas devido ao humor que ela apresentava, achei melhor nem dizer
nada.
- Você sentiu frio?
- Fora os barulhos
estranhos né? Parecia que tinham bichos andando no telhado, um frio danado, você roncando..
neeeeeeeeeem. To gostando daqui não.
Ainda bem que, aparentemente, meu ronco não era o
principal problema...
- Nem vi.
Fui ao banheiro e reparei
que um filete de Sol estava refletido no
espelho. O Sol! Ar
puro! Natureza! Ah, vista pra lagoa.
Saí correndo e pulei a
cama. Abri a janela para ver a vista pra aquela lagoa e...
Não tinha vista pra lagoa.
Esfreguei os olhos de novo
e não vi a lagoa.
- Amor, cadê a lagoa?
- rnnnn?
- cadê a lagoa?
- rnnnnn?
- A lagoa! Tinha que ter
vista pra lagoa! Eu
paguei por isso. E ninguém pode falar que ela secou porque choveu o suficiente para a cidade de Sete Lagoas chamar
Um Lagoão.
- Annnnrnnrnnnrnnn...
Era inútil. Ela ainda não
havia entendido.
Sentei na cama chateado. E então, o estrondo veio de novo. E sem o “angelical” de novo.
- Que que é?
- Uai amor, não tem vista
pra lagoa.
- Como não?
- Não tem... olha lá.
Ela levantou e não viu
também.
- É, não tem vista.
- Depois vou olhar porque
não temos a vista.
Vamos tomar café?
E aqui cabe um parênteses.
O café foi anunciado como um café igual a de um núcleo rico da novela das 21hrs. Quando minha futura esposa ligou para
reservar, a dona da pousada informou que muita gente ficava hospedado lá por
causa do café que
eles serviam. A expectativa era enorme.
Descemos para o café na
expectativa de enfrentar uma manifestação dos Vigilantes do Peso, com faixas de
“Abaixo os carboidratos”, “Glicose sucks” e nos alertando do perigo real daquele café para quem estava fazendo dieta.
Porém, não vimos nada
disso. Aliás, não vimos ninguém.
Sentamos à mesa e veio uma mocinha simpática com dois pratos
com um pequeno pedaço de mamão cada. Ela nos deu bom dia, entregou um prato
para cada um, e foi embora.
Olhamos para o mamão. A namorada
me entregou o dela porque queria guardar todo o espaço estomacal para o resto
do café. Ela iria se esbaldar em bolos, pães, biscoitos, pães de queijo, tortas
e...
- Com licença, o misto de
vocês.
A mocinha quase nos matou
de susto. Ela veio
com a mesma simpatia e, desta vez, estava trazendo dois pratos com um misto-quente
em cada um.
E olhei para minha
namorada. Ela me olhava. Olhamos para os mistos. E a moça parecia que ia sair da cozinha de novo. Eu imaginei o bolo, os
biscoitos, os pães de
queijo, as tortas, mas não imaginaria aquilo. Se
me perguntassem o que ela iria trazer valendo 1 milhão de reais, tinha errado feio.
- O suco de vocês.
E entregou um copo de 300
ml de suco de laranja para cada um de nós.
E sumiu. Comemos nosso misto e esperamos
por 10 minutos para
ver se vinha algo de novo Obviamente, sem êxito.
E do nada, veio uma pessoa
que de longe achei que era mulher. Quando ela se aproximou, tive dúvidas. Usava
uma calça jeans, uma bota suja nos pés, camisa xadrez-quadriculada e tinha a voz da Paula Fernandes gripada.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Vocês chegaram tarde.
- Pois é. Ficamos presos na
lagoa.
Nem com duas frases ditas, eu consegui distinguir se
era homem ou mulher.
- Sem problema. E aí,
gostaram do café?
Antes que eu respondesse ‘Que café’, fui interrompido.
- Se quiserem tem aqueles
biscoitos ali. E café
também.
E aí reparei os biscoitos, que também deviam ser
herança da família real e estavam ali desde quando esconderam do D. João VI. Juro que pensei em perguntar se ali era um SPA e
não haviam me
informado. Só que minha namorada fez o favor
de responder por mim,
com aquele sorriso que ela só mostra para agradar alguém, e nunca usa comigo.
- Tá tudo ótimo.
Obrigada.
- Então gente, a piscina fica ali. Tem
um freezer lá. Se você quiser trazer algo, pode colocar lá que ninguém
mexe.
Claro, não tem
ninguém aqui.
- Ok.
- Qualquer coisa me chama
lá. Chamo Dorotéia.
Ah, é mulher. Sabia.
- Ok Dorotéia. Só uma
coisa. Fui informado que eu teria vista pra lagoa. E não vi.
- Você tá no quarto 10?
- Sim.
- Uai, você não reparou que
dá pra ver a ponta da lagoa? Na hora que você subir você repara.
E fomos para o quarto. Eu
tinha que conferir.
E realmente vi a ponta da
lagoa. Tão “ponta”, que achei que era um córrego. Talvez a cidade
chamasse Poça Santa e
eu não sabia.
Fiquei chateado pela segunda vez. Minha
namorada, para animar, disse para irmos passear na cidade e esperar pela minha
irmã.
E assim foi feito. Andamos
pela cidade e minha irmã chegou na hora do almoço.
Depois de enfiarmos o pé-na-jaca em uma churrascaria, contamos da “hospedagem 5 estrelas”. Meu cunhado
não acreditou e disse que estávamos exagerando. Apenas ri.
Resolvi comprar cerveja
para aproveitar a piscina e quando chegamos na pousada, não acreditei.
TODOS os quartos estavam ocupados. Com exceção do meu e o
reservado para minha irmã. Dos quartos restantes, todos estavam ocupados. E
todos os ocupantes se conheciam. E todos conheciam a Dorotéia, a dona da
Pousada. E todos estavam confraternizando na piscina.
Ficamos um pouco na piscina. Depois
subimos para descansar um pouco. Após levantar, e tomar choque na torneira do chuveiro, fomos a um barzinho assistir um jogo da
seleção brasileira e voltamos para dormir.
Eu queria ver minha irmã e
meu cunhado no café. Estava ansioso. Eles haviam dito que estávamos exagerando.
E no café, no dia seguinte,
após o mesmo ritual, eles verificaram que era verdade.
Meu cunhado tentou algo sem
sucesso:
- Aqui, posso pedir outro
misto.
- Infelizmente não.
E então ele propôs.
- Temos que fazer algo.
Apenas concordei, pois parecia que ele tinha um plano.
(continua...)
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