terça-feira, 1 de setembro de 2015

Caderneta


Belo Horizonte, mês de junho de 1992. Duas horas da tarde.


Ali estava mais um dia, sob o olhar sanguinário do Tião, disciplinário do Colégio onde estudava. Vocês não sabem como era caminhar com a cabeça na mira do olhar dele. Com uma caneta na mão e um papel, ele dedurava pro diretor sem dó.

Estava sentado no corredor, em frente à sala do diretor sem saber o motivo de estar ali. Era bem constrangedor ser chamado para lá comparecer, por meio da caixa de som que ficava acima do quadro, ao lado do crucifixo na sala de aula.

Vinte minutos depois de aguardar, senti a morte tocar meu ombro. Um vento noroeste gelado surgiu e arrepiei do dedão do pé ao último fio de cabelo. Eu conhecia aquele sapato que saiu da sala dele. Só de ouvir o pigarro do homem que ameaçava sair de lá as lembranças apareciam. Apenas pelo barulho das chaves eu imaginava que eu estava muito encrencado: Meu pai.

Raríssimas vezes meu pai era chamado no colégio. Geralmente minha mãe era convocada para tratar de algum assunto relacionado à minha vida escolar. Mas meu pai, não. Saber que ele estava ali conversando com o diretor era como saber que iria para a forca.

Meu pai saiu, despediu do diretor, olhou para mim e não falou nada. Virou as costas e se dirigiu à saída do colégio. Sem olhar pra trás.

Minha reação foi apenas juntar as mãos. Abaixei a cabeça e rezei. Cheguei até  à metade do Pai-Nosso.

- Pode entrar.

- Tá.

- Senta aí e me explica o que é isso.

- Isso o quê?

- “Issaí” sobre a mesa.

Olhei e não entendia. Havia papéis, canetas, provas, um bloquinho de papel, figurinhas do Campeonato Brasileiro, uma Playboy.

- Desculpa, mas eu não se...

- O que é isso aqui?

Aí eu entendi.


3 MESES ANTES...


Umas das coisas que eu tinha mais preguiça na vida era arrumar material escolar, principalmente os velhos. E não tinha jeito. Começo do ano, eu tinha que mexer nos cadernos do ano anterior, geralmente para arrancar as folhas em branco e aproveitá-las para rascunho.

Até que um dia, enquanto organizava essas folhas de rascunho, comecei a assistir à novela que passava. E baseado no que eu vi, tive uma idéia. Ajeitei os papeis aqui, ali, cortei acima e pronto!

No outro dia, cheguei ao colégio e fui anotar um recado da professora. Até que uma menina da minha sala vira para a outra e grita:

- Olha! Ele tem a Caderneta do Jorge Tadeu.

E começou uma bagunça que só acalmou quando a professora ameaçou aumentar o dever. No intervalo, chegou um camarada.

- Deixa eu ver sua caderneta aí.

- Olha aqui.

Basicamente consistia em uma folha de papel de caderno, dividida igualmente em quatro pedaços. Devia ter umas 30 folhas no máximo, com um grampo de grampeador comum e uma fita crepe na lateral esquerda, formando uma “brochura” na caderneta. Na frente estava escrito diagonalmente – e com minha própria letra – Caderneta do Jorge Tadeu.

- Legal demais, cara. Quanto que você quer nela?

- Você quer comprar?

- Claro. Pago 10 mil cruzeiros reais (deve dar uns 4 reais)

- Opa! Fechado!

E assim eu vendi a caderneta.

Uns cinco minutos depois, aparece outro menino perguntando sobre a caderneta com 10 mil cruzeiros reais na mão.

- Cabei de vender.

- Mas amanhã você vai trazer?

Olhei para o lado e vi cifrões nos olhos do meu amigo Barata.

- Claro.

Eu tava na ostentação. Igual ao Jorge Tadeu mesmo.
No outro dia vendi quatro. No seguinte, seis. Na semana seguinte foram vinte duas. E assim sucessivamente.

Eu sei que em dois meses eu ostentava lanchando mini pizza e refrigerante no recreio e tomando Milk Shake após a aula. Eu não sei se é apenas fruto da minha imaginação, mas lembro de andar com terno risca de giz, óculos escuros e seguranças e participar de festas de famosos.



VOLTA PRA SALA DO DIRETOR


- E então. O que é isso?

- É a caderneta do Jorge Tadeu.

- Isso eu to lendo né? Mas o que significa isso?

- Ué, diretor, você não assiste a novela não? Jorge Tadeu é o cara tem um caso com metade das mulheres na novela. É o Fábio Júnior, que faz xixi numa árvore e as mulheres comem as flores dessa árvore quan...

- EU SEI QUEM É JORGE TADEU! EU QUERO SABER O QUE SIGNIFICA ISSO!

- Então. Todas as mulheres que ele tem um caso ele anota nessa caderneta. Aí o povo quer saber o que ele fal...

- GUILHERME! EU JÁ ENTENDI!

- Então.

- Você que fez esse treco aqui?

- Isso.

- E você tá vendendo isso?

- Bom, tô.

- Como que começou isso?

- Então, eu fiz uma pra mim, mas o Felipinho me ofereceu 10 mil pra ficar com ela. Aí o Julio falou que se eu fizesse outra ele comprava também. Aí depois foi o Renato, o Patrick, o Rafael, o Thiag..

- Entendi já. E você ganhou 10 mil em cada?

- Não. Só as primeiras. Depois aumentei pra 12 mil porque aumentei a fita crepe nas beiradas né?

- Ah é mesmo?

- É. Você quer uma?

- CLARO QUE NÃO!

- Ah...

- Eu quero que você pare com isso.

- Por quê?

- Porque sim. O pai do Fernando veio aqui ontem reclamar que o filho chegou em casa com fome. Ele estranhou, já que tinha dado dinheiro pra ele lanchar. E quando perguntou pro Fernando, ele disse que tinha gastado o dinheiro comprando a Caderneta do Jorge Tadeu no colégio. Ele pediu pra ver e viu isso que você fez.

- Será que o pai dele quer?

- NÃO, GUILHERME!!! ELE NÃO QUER!!!! Ele quer que o colégio tome providências e proíba

- Ah...

- Chamei seu pai aqui e ele disse que não sabia de nada, mas me garantiu que isso não vai acontecer mais. Então eu estou te comunicando que isso é proibido no colégio...

- Mas...

- ... e se isso voltar a ocorrer eu vou chamar seu pai de novo e comunicá-lo da sua suspensão.

- Mas...

- Estamos entendidos?

- Mas eu ainda tenho umas cinco cadernetas lá.

- Não quero saber. “Cabou” essas vendas aqui.Vou falar pro Tião pra ficar de olho em você.

- Tá bom.

- Pode voltar pra sua sala.

Saí da sala do diretor me sentindo o cara mais pobre do mundo. Fecharam meu negócio e nem na clandestinidade iria atuar.

Cheguei em casa e imaginei que iria sofrer a pena restritiva de liberdade. Presumi um castigo de meses e umas chineladas.

Mas estava enganado. Meu pai contou pra minha mãe e ambos riram. Depois me chamaram e disseram que era pra parar com as vendas e estudar. E me confiscaram as cadernetas e as folhas que eu usava.

E sem castigo.

Quanto ao dinheiro, minha mãe pediu e disse que ia depositar na minha caderneta de poupança para eu ter um dinheiro guardado.

Ironicamente, o que ganhei na venda das cadernetas do Jorge Tadeu foi para a caderneta de Poupança e me garantiria uma aposentadoria tranqüila.


Pena que o presidente do país era o Collor.


Resumo de quem era Jorge Tadeu e da novela AQUI



Guilherme Cunha. Ex-advogado. Futuro escritor. É apenas mais um trabaiadô,doutô. Mais um nerd gordo que acha que é blogueiro. Apreciador de boa cerveja, boa música, boa conversa e de paciência Spider. Melhor jogador de War com as peças verdes. Siga-o no twitter: @guijermoacunha

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