segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

1996



A hora chegou.

Não que a preparação até ali tenha sido fácil. Pelo contrário, foi preciso muita pesquisa e horas de sono foram desperdiçadas até aquele momento.

Depois de 4 meses, 6 dias e 3 horas, ela estava ali, pertinho dele, como ele não esperava.

Tudo começou quando sua mãe pediu pra que buscasse couve lá no Seu Geraldo. Assim que virou a esquina, viu um carrão preto estacionando em frente à antiga casa do Seu Manoel que morreu ano passado.

Quando a porta de trás se abriu, e aquela menina desceu do carro, parecia que estava tudo em câmera lenta. O olhar descompromissado dela, que parecia se preocupar mais com os fones no seu ouvido e com o cachorro que estava em seu colo, aparentava ser de outro mundo.

De provável descendência japonesa, com a pele clara, olhos puxados, cabelo escuro e liso, fino, franja cortada rente às sobrancelhas. Usava calça jeans azul, com uma camiseta vermelha com uma árvore branca no canto direito. E sorriu. Lindamente.

Nunca antes na história dos seus 14 anos havia sentido o que sentiu naquele momento.

Estranhamente, suas pernas bambearam e algo esquentou em seu corpo. Ele simplesmente não conseguia se mover e nem tirar os olhos daquela menina que foi logo entrando na casa.

E só aí que ele se movimentou.

Quando voltou pra casa, deixou a compra da mãe em cima da mesa e nem os gritos de “Cadê meu troco?” interromperam a corrida até a janela do seu quarto, pra ver se conseguiria ver a casa dela.

Pulou até a sua cama, depois na cama da sua mãe, e por fim subiu no banquinho para alcançar a janela do banheiro, a única que tinha visão do quintal da casa dela.

Como era linda.

Pena que os seus sessenta e um quilos distribuídos em um metro e cinqüenta e dois de altura, aliados aos óculos e às espinhas não atrairiam a atenção dela.

Aliás, como não atraíra a atenção de nenhuma espécie feminina há dois anos. As únicas aproximações que recebeu foram de uma freira amiga da sua mãe - que vivia o abraçando quando o via - e de Caju, a cadela do vizinho que adorava lamber seus calcanhares.

Passou dias a admirando pela janela, tanto que até largou o Internacional Super Star Soccer de lado. Sua mãe até estranhou não ouvir mais as narrações imitando o Sílvio Luiz, e constatar que as revistinhas do Lanterna Verde e do Batman permaneciam exatamente onde ela havia colocado.

- Filho, tá acontecendo alguma coisa?

- Não, mãe.

- O que cê tá fazendo na janela então?

- Nada.

- Você tá bem?

- Tô! Já disse.

- Já que tá bem e tá à toa, faz um favor pra sua mãe! Corre lá na venda do Periquito e compre cloro e água sanitária.

- Sério, mãe? Não pode esperar quinze minutos?

- Não. Agora!

O problema não era ir ao Periquito, mas perder a chance de vê-la chegando do inglês. Todos os dias, entre 15h30 e 15h40, o carro da mãe de uma amiga dela parava em fila dupla, ela saía pela porta de trás com suas meias brancas até os joelhos e saia negra como os cabelos. Despedia acenando da porta de casa e entrava, fechando o portão. Em 10 segundos ele a via novamente, quando ela subia as escadas rumo ao segundo andar da casa.

Todos os dias ele a olhava nesse horário e agora não poderia para poder ir à venda para sua mãe.

Andando cabisbaixo pela rua, sem pisar nas linhas do desenho do piso da calçada, pensava em como falar com ela. Se lembrou que talvez o Porquinho, seu amigo que morava perto da venda, pudesse ajudar.

- Oi, Porquinho!

- Fala comigo!

- Passei aqui e perto e lembrei que meu primo me pediu pra te perguntar uma coisa.

- Que primo?

- Não importa. Ele pediu segredo.

- Tá bom. Fala aí.

- Então. Meu primo tem um amigo que tá apaixonado com a vizinha dele. E ele é meio feio, sabe? Como que ele faz?

- Ah, sei lá. Você sabe que eu não sei chegar nas meninas, né? Elas é que chegam em mim hahahaha!

- Sei. Aham.

- Pois é. Mas sei lá. Ele tem que chamar a atenção dela. Tipo, jogar bola na frente dela, fazer uma porrada de gols, dar chapéu, canetinha nos rivais e tals. Aí ela olha pra ele.

- Mas a vizinha não o vê jogando bola.

- Como que você sabe?

- Eu sei.

- Ah, sei lá então. Eu chamo atenção das meninas assim. Vou ter que entrar porque dei pause no Sonic II lá e não tem como salvar né?

- Eu sei. Valeu.

Chegou até a venda pensando que não tinha adiantado nada aquela conversa com o Porquinho e pediu a água sanitária e o cloro.

- Tá aqui, guri. To te achando meio pra baixo. Que foi?

- Nada não.

- Tá apaixonado é?

- Eu? Tá doido?

- To vendo os coraçõezinhos daqui.

- Sério?

- Ó! Te dar um conselho. Fale pra ela o que você tá sentindo.

- Fome?

- Não. Que você acha ela linda e etc. Vai por mim.

- Tá bom. A mãe pediu pra você anotar. Depois ela passa aqui.

- Tá bom. Com Deus aí! E boa sorte.

Na volta pra casa, pensou em tudo aquilo e na conversa que teve com o Vinicius, seu psicólogo, que disse que “aquela insegurança era normal já que os jovens costumam colocar mulheres em pedestais, estabelecendo possíveis frustrações como fatos consumados, sendo que o certo era viver os dias sem grandes anseios. Pois um cotidiano sem frustrações seria aproveitado para formação do ego sem grandes quedas, e que possibilitaria a retirada do medo do fracasso, já que as perdas para quem esperava muito eram maiores do que a vitória para quem esperava pouco”.

Como era difícil entender aquilo tudo.

E foi aí que aconteceu. Depois de 4 meses, 6 dias e 3 horas, ela estava ali, pertinho dele, como ele não esperava.

Ela estava ali, na porta do prédio dele. Sozinha.

Ele com uma sacola preta com uma garrafinha de cloro e outra de água sanitária.

As pernas tremeram. A garganta secou. E ela estava ali, a vinte metros dele.

Cenas de filmes românticos passaram pela sua cabeça, uma poesia que tentava decorar, o olhar do Seya para a Saori no Cavaleiros do Zodíaco, a ideia de voltar até a venda do Periquito. Quinze metros.

Era agora ou nunca. Teria que ser a cantada perfeita. Dez metros.

Pensou em ser meticuloso, manhoso na medida certa. Tinha que derreter o coração dela. Pigarreou. Cinco metros.

Saiu o arriscado e infalível. Um metro.


- Oi.

- Oi.

E aí virou um encontro.

Aí viraram três.

Aí virou a vontade de passar mais tempo juntos.

O tempo deixou de ser importante e parecia ter sido ontem.

Parecia que sempre foi.

E parecia ser pra sempre.



Guilherme Cunha. Ex-advogado. Futuro escritor. É apenas mais um trabaiadô,doutô. Mais um nerd gordo que acha que é blogueiro. Apreciador de boa cerveja, boa música, boa conversa e de paciência Spider. Melhor jogador de War com as peças verdes. Siga-o no twitter: @guijermoacunha

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