Tudo o que ele queria era o seu PenDrive com suas músicas.
Não bastava estar sem
ele, preso no trânsito às seis horas da tarde e dependendo apenas do rádio.
Tinha que chover também. E seu celular com apenas 5% de bateria.
Por isso Júlio
estava tão irritado. Verde de raiva igual ao Hulk, como sua namorada sempre
dizia.
Sua única diversão
era olhar as pessoas correndo da chuva e procurando abrigos para se protegerem.
Nem mesmo o rádio o distraia, já que ficava alterando as estações em busca de
uma música que o animasse, embora não pensava em nenhuma que conseguisse tal
proeza.
Por isso, olhava
pela janela. Quase esboçou um sorriso quando um carro passou por uma poça
d’água e molhou um rapaz de mochila nas costas e fones no ouvido.
Mas um casal chamou
sua atenção. Um rapaz e uma menina corriam, sendo que ele levantou o casaco para
proteger a moça e evitar que a mesma se molhasse ainda mais. Júlio focou nos
dois até que chegaram a uma marquise.
A moça tentava
tirar o excesso de água e cruzou os braços, contraindo contra o corpo. O rapaz,
percebendo que ela sentia frio, colocou a jaqueta sobre os ombros dela e a
abraçou, beijando sua testa.
Porém, Júlio voltou
à realidade quando buzinas começaram a tocar para demonstrar que o sinal estava
aberto. Andou alguns metros e parou de novo em outro semáforo, já procurando o
jovem casal.
Olhou para a
marquise e eles não estavam lá. Tentou o outro lado da rua, a proteção da banca
de revistas. Nada. Eles haviam sumido.
Parado no trânsito,
tentou esquecer daquele casalzinho e focou na música que tocava no rádio.
“She
Maybe
the face I can't forget.
A
trace of pleasure or regret
Maybe
my treasure or the price I have to pay.
She
maybe the song that summer sings.
Maybe
the chill that autumn brings.
Maybe
a hundred different things
Within
the measure of a day”
Se lembrou então da
primeira vez que ouviu essa música. Estava em casa e sua mãe esboçou um sorriso
ao ouví-la, dizendo logo em seguida:
“Essa música é minha e do seu pai”.
Na época, Júlio riu
da situação e achou aquela música cafona, mas dessa vez era diferente.
Traduzindo
mentalmente a música, descobriu que falava de uma moça que podia ser o rosto
que o rapaz não podia esquecer, de um traço de prazer ou de arrependimento. Que
essa mulher podia ser o seu tesouro ou preço que ele teria que pagar, a música
que o verão canta ou o frio que o outono traz. No fim do primeiro verso, falava
ainda que ela podia ser cem coisas diferentes do mesmo dia.
Mas na segunda
estrofe é que ele pegou o pulo do gato. A menina da música podia ser a bela ou
a fera, a fome ou o banquete. Podia transformar cada dia em um paraíso ou em um
inferno.
“Podia”.
Júlio entendeu que
isso resumia a dúvida do rapaz da música. A moça podia ser várias coisas, boas
ou ruins. Tanto é que no fim da segunda estrofe, o protagonista afirma que
aquela mulher podia não ser o que ela parecia ser dentro da sua casca.
Tanto é que,
conforme a música, a moça que sempre parecia ser tão feliz no meio da multidão,
com olhos que podiam ser tão secretos e tão orgulhosos, podia chorar e ninguém
podia vê-los. Ela podia ser o amor, que não pode esperar para durar, assim como
poderia vir, para ao rapaz, das sombras do passado que ele lembraria até o dia
que morresse.
E foi na última
estrofe que ele teve certeza, pois depois do rapaz da música afirmar que a moça
podia ser a razão pela qual sobrevive, o porquê e o motivo dele estar vivo, a
partir desse verso, a mulher não era mais aquela que podia ser algo. Ele afirma
que ela era a única que ele iria cuidar prontamente ao longo dos anos, durante
as adversidades. Que iria pegar as risadas e as lágrimas dela e faria delas
todas as suas lembranças. E conclui dizendo que para onde ela fosse teria que
estar, pois o sentido da vida dele era ela.
Só quando a música
acabou que Júlio entendeu a mensagem. Na música, o futuro do casal incerto.
Seja pelo rapaz, que não sabia se teria felicidade ou sofrimento ou pela moça,
que poderia transmitir felicidade e chorar sem ninguém ver. Mas o que importava
é que, para o rapaz ela era a razão de tudo. Da sua vida, da sua dedicação. Das
expectativas.
E foi aí que Julio
percebeu que seus pais estavam certos. Aquela música era deles. Imaginou os
pais mais novos, há mais de 30 anos, inseguros, sem saber se o casamento iria
durar, se terminariam em alguns anos ou se teriam filhos. E mesmo assim,
dedicaram e arriscaram, dando o sentido da vida um para o outro.
Mas aquela música
também era daquele casal que correu e se protegeu da chuva na marquise. A moça
com frio poderia ser a futura companheira de vida do rapaz do casaco. Eles
podiam casar e ter filhos, mas também podiam terminar na semana seguinte e
guardarem mágoas eternas. Nem um dos dois tinha certeza de nada, mas quando
corriam para a marquise juntos, ambos viviam como se dissessem para o outro que
para onde um fosse, o outro teria que estar.
Ainda naquele
transito engarrafado, pegou o celular para mandar uma mensagem para sua
namorada, mas não tinha bateria.
Mais calmo, enfrentou
o transito e foi para casa dela.
Ao chegar, ela estava
sentada no sofá.
- Nossa Júlio,
estava preocupada, você demorou. Deve tá verde de raiva igual ao Hulk né? Nesse
trânsito pesado e chuva...
- Estou ótimo,
Alicia. Vem cá.
Tirou o sapato, a
pegou pela mão e começou a dançar sobre o tapete da sala. Sem música alguma.
Apenas dançavam.
Ela não entendia
nada e achava que ele poderia estar doido. Ou bêbado. Não importava. Apenas
acompanhou, encostando a cabeça em seu ombro.
Ele pensava que poderia
estar sendo idiota em dançar sem música, mas apenas seguia a música que estava
na sua cabeça. E com uma certeza.
O sentido da vida
dele era ela.
Guilherme Cunha. Ex-advogado. Futuro escritor. É apenas mais um trabaiadô,doutô. Mais um nerd gordo que acha que é blogueiro. Apreciador de boa cerveja, boa música, boa conversa e de paciência Spider. Melhor jogador de War com as peças verdes. Siga-o no twitter: @guijermoacunha
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