segunda-feira, 27 de julho de 2015

She


Tudo o que ele queria era o seu PenDrive com suas músicas.

Não bastava estar sem ele, preso no trânsito às seis horas da tarde e dependendo apenas do rádio. Tinha que chover também. E seu celular com apenas 5% de bateria.

Por isso Júlio estava tão irritado. Verde de raiva igual ao Hulk, como sua namorada sempre dizia.

Sua única diversão era olhar as pessoas correndo da chuva e procurando abrigos para se protegerem. Nem mesmo o rádio o distraia, já que ficava alterando as estações em busca de uma música que o animasse, embora não pensava em nenhuma que conseguisse tal proeza.

Por isso, olhava pela janela. Quase esboçou um sorriso quando um carro passou por uma poça d’água e molhou um rapaz de mochila nas costas e fones no ouvido.

Mas um casal chamou sua atenção. Um rapaz e uma menina corriam, sendo que ele levantou o casaco para proteger a moça e evitar que a mesma se molhasse ainda mais. Júlio focou nos dois até que chegaram a uma marquise.

A moça tentava tirar o excesso de água e cruzou os braços, contraindo contra o corpo. O rapaz, percebendo que ela sentia frio, colocou a jaqueta sobre os ombros dela e a abraçou, beijando sua testa.

Porém, Júlio voltou à realidade quando buzinas começaram a tocar para demonstrar que o sinal estava aberto. Andou alguns metros e parou de novo em outro semáforo, já procurando o jovem casal.

Olhou para a marquise e eles não estavam lá. Tentou o outro lado da rua, a proteção da banca de revistas. Nada. Eles haviam sumido.

Parado no trânsito, tentou esquecer daquele casalzinho e focou na música que tocava no rádio.

“She
Maybe the face I can't forget.
A trace of pleasure or regret
Maybe my treasure or the price I have to pay.
She maybe the song that summer sings.
Maybe the chill that autumn brings.
Maybe a hundred different things
Within the measure of a day”




Se lembrou então da primeira vez que ouviu essa música. Estava em casa e sua mãe esboçou um sorriso ao ouví-la, dizendo logo em seguida:

Essa música é minha e do seu pai”.

Na época, Júlio riu da situação e achou aquela música cafona, mas dessa vez era diferente.

Traduzindo mentalmente a música, descobriu que falava de uma moça que podia ser o rosto que o rapaz não podia esquecer, de um traço de prazer ou de arrependimento. Que essa mulher podia ser o seu tesouro ou preço que ele teria que pagar, a música que o verão canta ou o frio que o outono traz. No fim do primeiro verso, falava ainda que ela podia ser cem coisas diferentes do mesmo dia.

Mas na segunda estrofe é que ele pegou o pulo do gato. A menina da música podia ser a bela ou a fera, a fome ou o banquete. Podia transformar cada dia em um paraíso ou em um inferno.

“Podia”.

Júlio entendeu que isso resumia a dúvida do rapaz da música. A moça podia ser várias coisas, boas ou ruins. Tanto é que no fim da segunda estrofe, o protagonista afirma que aquela mulher podia não ser o que ela parecia ser dentro da sua casca.

Tanto é que, conforme a música, a moça que sempre parecia ser tão feliz no meio da multidão, com olhos que podiam ser tão secretos e tão orgulhosos, podia chorar e ninguém podia vê-los. Ela podia ser o amor, que não pode esperar para durar, assim como poderia vir, para ao rapaz, das sombras do passado que ele lembraria até o dia que morresse.

E foi na última estrofe que ele teve certeza, pois depois do rapaz da música afirmar que a moça podia ser a razão pela qual sobrevive, o porquê e o motivo dele estar vivo, a partir desse verso, a mulher não era mais aquela que podia ser algo. Ele afirma que ela era a única que ele iria cuidar prontamente ao longo dos anos, durante as adversidades. Que iria pegar as risadas e as lágrimas dela e faria delas todas as suas lembranças. E conclui dizendo que para onde ela fosse teria que estar, pois o sentido da vida dele era ela.

Só quando a música acabou que Júlio entendeu a mensagem. Na música, o futuro do casal incerto. Seja pelo rapaz, que não sabia se teria felicidade ou sofrimento ou pela moça, que poderia transmitir felicidade e chorar sem ninguém ver. Mas o que importava é que, para o rapaz ela era a razão de tudo. Da sua vida, da sua dedicação. Das expectativas.

E foi aí que Julio percebeu que seus pais estavam certos. Aquela música era deles. Imaginou os pais mais novos, há mais de 30 anos, inseguros, sem saber se o casamento iria durar, se terminariam em alguns anos ou se teriam filhos. E mesmo assim, dedicaram e arriscaram, dando o sentido da vida um para o outro.

Mas aquela música também era daquele casal que correu e se protegeu da chuva na marquise. A moça com frio poderia ser a futura companheira de vida do rapaz do casaco. Eles podiam casar e ter filhos, mas também podiam terminar na semana seguinte e guardarem mágoas eternas. Nem um dos dois tinha certeza de nada, mas quando corriam para a marquise juntos, ambos viviam como se dissessem para o outro que para onde um fosse, o outro teria que estar.

Ainda naquele transito engarrafado, pegou o celular para mandar uma mensagem para sua namorada, mas não tinha bateria.

Mais calmo, enfrentou o transito e foi para casa dela.

Ao chegar, ela estava sentada no sofá.

- Nossa Júlio, estava preocupada, você demorou. Deve tá verde de raiva igual ao Hulk né? Nesse trânsito pesado e chuva...

- Estou ótimo, Alicia. Vem cá.

Tirou o sapato, a pegou pela mão e começou a dançar sobre o tapete da sala. Sem música alguma. Apenas dançavam.

Ela não entendia nada e achava que ele poderia estar doido. Ou bêbado. Não importava. Apenas acompanhou, encostando a cabeça em seu ombro.

Ele pensava que poderia estar sendo idiota em dançar sem música, mas apenas seguia a música que estava na sua cabeça. E com uma certeza.

O sentido da vida dele era ela.



Guilherme Cunha. Ex-advogado. Futuro escritor. É apenas mais um trabaiadô,doutô. Mais um nerd gordo que acha que é blogueiro. Apreciador de boa cerveja, boa música, boa conversa e de paciência Spider. Melhor jogador de War com as peças verdes. Siga-o no twitter: @guijermoacunha

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