segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Dinha - Programada para matar


Nunca fui uma pessoa com muitas regras, mas sempre carrego algumas e uma delas é que nunca gostei de cortar cabelo em locais desconhecidos, principalmente se for longe de casa, e, por isso, só faço aquela poda capilar no mesmo barbeiro há tempos.

Entrando neste recinto nesse final de semana, tive uma surpresa.

- Guilherme, o Roberto não está aqui não.

- Como assim? Tava querendo cortar o cabelo e aparar a barba.

- Infelizmente ele teve que viajar, mas corta o cabelo com a Dinha.

- Quem é Dinha?

- É uma moça nova que tá trabalhando aqui. Vou chamar ela, peraí.

Antes mesmo que eu tivesse qualquer reação, o irmão do meu barbeiro chamou a tal da Dinha e isso logo ativou meu sentido de aranha.

Do nada, a terra começou a tremer. Começou bem de leve, de forma quase imperceptível, mas aos poucos, a intensidade dos tremores aumentou. Os copos começaram a tremer, e era claro que algo de errado estava acontecendo. Canetas rolavam pelo balcão e caiam no chão e subitamente meu deu aquela vontade de contestar quem disse que no Brasil não havia terremotos. Em determinado momento, quase tive que me agarrar ao balcão da recepção para não ser jogado ao chão.

- Boa tarde.

Primeiro olhei para o céu achando que alguma divindade estava falando comigo. Como vi que não, olhei para o lado. Era a Dinha. Devia ter uns 35 anos, morena, cabelos pretos e lisos. Quase 1.95m de altura e um peso que tinha, facilmente, três dígitos. Em arrobas.

- É cabelo e barba, filho?

Não conseguiria dizer não. A voz era muito grossa e potente, parecendo um trovão. Se eu negasse, ela poderia me matar. Era preferível correr o risco.

- Sim.

- Vem cá.

E fomos para o canto do salão, infelizmente bem longe da porta. Sentei na cadeira e a vi pegando aquele avental e jogando sobre meu corpo. Até aí tudo bem, o problema era como ela fosse amarrar aquilo no pescoço porque com aquele braço, caso ela puxasse a corda com força e desse um nó, eu morreria tranquilamente. Mas consegui respirar.

Comecei a ficar tranqüilo, afinal ela só iria cortar meu cabelo. Só que ela viu que a cadeira estava um pouco afastada do espelho e com uma delicadeza de um zagueiro argentino disputando uma final de Libertadores, ela ajeitou a posição do móvel dando-lhe um chute.


Olhei para os outros clientes com uma expressão de “vou morrer”, e eles me devolveram o olhar, concordando. Um deles até foi embora.



Sentado à cadeira, ela começou a levantá-la, usando aquele pedal que ergue a cadeira um pouco a cada vez que é apertado. Acho que desde que tenho 13 anos não era preciso mais usar aquele dispositivo, mas o problema nem era isso, e sim o jeito com ela bateu no pedal. Achei que ela quisesse matar um rato com a pisada forte que ela deu no pedal. E quando ela pisou, com a mesma força, pela segunda vez, pensei em correr. Mas já era tarde demais.


- Como que é o corte?

Quase respondi chorando que ela podia cortar de qualquer jeito e que só queria que ela não me matasse e se fosse da vontade dela podia até pintar de roxo. Mas aí vi que não dava pra falar isso e só respondi para passar máquina 3 nas laterais e tirar com a tesoura em cima, tirando volume.

- Beleza.

Quando ela pegou a máquina e ligou, fechei os olhos, imaginando minha morte. E quanto ela mais foi se aproximando, mais o barulho daquela máquina lembrava uma serra elétrica. Mas me surpreendi com a delicadeza dela. A primeira e a segunda passadas de máquina foram tranqüilas, mas na terceira eu parei de sentir minha orelha direita.

Tentei olhar pro lado pra ver se a minha orelha estava no chão já pensando em como ia explicar pro taxista que era pra ele correr pro Hospital das Clínicas para recolocar aquela orelha que estava no meu bolso. Porém, pra minha sorte, a orelha estava no lugar dela e não seria preciso mudar meu nome para Guilherme Van Gogh.

Eu só queria ir embora dali. 
Quando ela acabou com a máquina e pegou a tesoura, meu coração disparou. Já imaginei a minha morte de várias formas, mas minhas idéias foram interrompidas quando ela puxou meu cabelo, como um homem das cavernas, e anestesiou todo o meu coro cabeludo. Pensei em gritar que ela não era um índio e não precisava tirar meu escalpo. Quando senti a tesoura cortando os cabelos e que minha massa cefálica ainda era protegida, respirei mais aliviado.

O corte enfim, acabou. Pensando em correr dali o mais rápido possível, a voz do trovão interrompeu de novo.

- Falta a barba.- E ela pegou a navalha.

As pessoas dizem que antes de morrer, assistimos a um filme passando pela nossa cabeça.

Imediatamente me lembrei que durante o meu último namoro, não havia muitas regras que restringiam o relacionamento. Na verdade, só existiam duas: Barba sempre feita e nada de tatuagem dos Beatles. De resto, o céu era o limite.

E uma das coisas que tenho mais preguiça na vida é fazer a barba. Sempre morri de preguiça, acho uma perda de tempo danada e creio que se Deus tem aquela barbona branca e Jesus, Noé e a maioria dos personagens bíblicos também usam barba porque eu que tenho que fazer sendo que fomos feitos à imagem e semelhança do Criador?

Mas não tinha jeito. Não podia andar com barba por fazer, nem com a barba grande. Até mesmo porque, segundo as alegações dela, eu era advogado e tinha uma imagem a zelar, portanto, a barba era proibida.

Porém, passei em um concurso público, deixei de ser advogado e depois o namoro acabou. No meio da tristeza profunda pelo término, uma das poucas alegrias era saber que não precisava fazer a barba mais.

O único problema é que minha barba tem pontos falhos devido a um remédio para controle de Acne que tomei por 1 ano e que retardava o crescimento de pelos faciais. Outro motivo é o fato de ter caído com o queixo no chão quando criança e ter uma cicatriz que impede a barba de crescer, formando um pequeno clarão perto do pescoço.

Mas deixar a barba crescer era um ato de liberdade e, portanto, não ligava se aquilo ficava bem ou não e passei a usar aqueles pelos faciais que tinham a sensação de ser livre.

Só me lembro dela quando uma amiga minha - que é tipo um termômetro pra me avisar quando ela precisa ser aparada - utiliza palavras carinhosas como “Aqui, tá feio demais. Apara esse trem pelamordiDeus” para me alertar e me lembrar que a barba não precisa chegar no tamanho da barba de Jesus.

E lá estava eu, com minha barba de uns 2cm de fio e só desejando que a mesma fosse aparada e eu ficasse vivo ou pelo menos já pronto pro velório.

Antes que acabasse o filme da minha vida barbada em minha cabeça, ela prendeu o suporte da cabeça e chutou uma barra, fazendo com que a cadeira tombasse cerca de 30 graus pra trás.

Comecei a rezar.

Primeiro ela passou a máquina na barba, o que já garantia minhas orelhas intactas, pelo menos. Depois passou o creme de barbear e antes que eu acabasse o primeiro verso do “Pai Nosso", navalhou a barba junto a minha veia aorta. Já imaginando o jato esguinchando e ela gargalhando no meio do sangue que pintava o salão de vermelho, abri os olhos, e lá estava eu, bonitinho de cabelo cortado e com a barba aparada e desenhada.

Respirei aliviado, agradeci à Deus pela minha vida e mais uma vez fui interrompido por aquela voz.

- Lavar o cabelo agora.

Isso mesmo. Com ponto final. Não foi uma pergunta ou um convite e sim uma afirmação. Antes que eu falasse que não era preciso e que eu lavaria em casa, ela apertou o pedal e eu despenquei com a cadeira pro chão, pensando até que fosse quicar.

Andei para o lavatório com as mãos no peito, como se fosse uma mulher andando pelos corredores de um presídio. Sentei na poltrona e coloquei a cabeça para lavar naquele espaço pro pescoço com a sensação que ela viria com um machado e me decapitar. Prontamente, fechei os olhos.

Uma água quente caiu no meu cabelo e logo depois algo gelado. Antes que eu pensasse se era shampoo ou uma saliva sedenta dela, senti as mãos passarem pelo meu cabelo e chacoalharem minha cabeça com tanta força, que se pensei que seria menos doloroso lavar a cabeça numa máquina de lavar.

Um jato de água quente caiu sobre minha cabeça e pensei que agora eu morreria afogado. Tentando respirar pela boca e sem coragem de abrir os olhos, veio a segunda sessão de tortura.

Antes de me recuperar do afogamento, ela tentou me asfixiar. Com uma toalha, foi enxugar o meu cabelo, chacoalhando e esfregando com tanta força que achei que a toalha estaria vermelha do sangue do meu cérebro que ela enxugou.

Grogue pelas tentativas de homicídio, abri os olhos e vi ela caminhando em minha direção com um objeto preto na mão. Parecia uma faca... Mas era um pente

- Quer que penteia?

- NÃO! – respondi gritando – Pode deixar, tá tranqüilo.

Olhei para o espelho com medo das escoriações no meu rosto e pescoço, mas eu estava, aparentemente, intacto, e penteei o cabelo.

- Obrigado, Dinha. Desculpa qualquer coisa aí.

- De nada. Deu 30 reais.

- Aqui. 30 reais. Boa tarde.

Dei o dinheiro e nem olhei pra trás.

Portanto, se alguém me encontrar na rua daqui uns 2 meses e ver que estou cabeludo e barbudo não estranhe, é apenas medo de cortar cabelo.


Guilherme Cunha. Ex-advogado. Futuro escritor. É apenas mais um trabaiadô,doutô. Mais um nerd gordo que acha que é blogueiro. Apreciador de boa cerveja, boa música, boa conversa e de paciência Spider. Melhor jogador de War com as peças verdes. Siga-o no twitter: @guijermoacunha


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