terça-feira, 23 de julho de 2019

Verão


Estava exausto.
Não era fácil trabalhar oito horas por dia e depois encarar a faculdade à noite. Aliás, trabalhar não, pagar seus pecados durante oito horas por dia no calor que fazia.

Se tinha algo que irritava Gabriel era estagiar durante seis horas e fazer mais duas horas extras como “jornada complementar” para conseguir uma bolsa decente e pagar os boletos que chegavam.


Mas agora a situação ia melhorar, já que estava formando em Tecnologia da Informação e voltaria a ter vida social, à academia e a ter as noites de sono que nove entre cada dez médicos (e dentistas) recomendam.

E quando o despertador tocou, depois de pensar que deveria estar previsto na Constituição que acordar antes do sol era crime inafiançável, percebeu que havia uma mensagem pra ele.

 “Precisamos conversar”.

“Aiai”, sussurrou Gabriel.

Levantou, tomou seu banho, fez carinho em Bengala, sua cadela, tomou um iogurte quase correndo, escovou os dentes e saiu de casa.

No chacoalhar do ônibus, sentiu o telefone vibrar.

Já acordou? Vai me responder não?” apareceu na tela.

A decisão de ignorar foi seguida do aumento do volume e de ajustar os fones no ouvido. Focou sua atenção nos versos de Metamorfose Ambulante que tocava no seu Ipod no momento. Ouvir o Mestre Raul fazia parte do despertar e iniciava o processo de tentar não se estressar com a rotina, como ele dizia.

Desceu do ônibus, caminhou por três quarteirões e comemorou mentalmente que naquela sexta-feira, NADA iria atingi-lo. Era o último dia de aula, último dia da semana, dia de pagamento e dia de poder trabalhar à tarde tomando uma cerveja.

Bateu seu ponto, cumprimentou Daniela, a recepcionista do escritório, com um “Bom Dia, Dani! Já te disse que hoje é meu último dia de aula?” e seguiu feliz para a sala do TI sorrindo, fingindo não ter escutado o “Bom dia, peste! Há dois meses só, todos os dias” que ela respondeu.

Ligou o computador, abriu o armário para colocar sua mochila e, quando ia ligar o ar condicionado, viu o telefone tocando com a informação de “MALA” escrita no visor.

- Carai, Tomate, que chatice é essa? - disse ao atender.

- Você não vai me responder não?

- Tá morrendo?

- Não, pô, mas poderia pelo menos me responder, né?

- Não acordei ainda, cara. São 08:07 da manhã. Mas diga, qual o motivo do desespero?

- Ué... Hoje você forma, quero saber aonde vamos bebemorar. Já decidiu?

- Não sei...

- Você é muito Zé Ruela, bicho... Hoje é dia pra gente beber, comemorar a formatura...

- Eu né, porque o senhor só ano que vem se Deus quiser...

- Sim! Mas hoje a noite é sua... Você tá precisando sair...

- Ah, tá bom. Vou pensar aqui e te falo. Me deixa trabalhar agora… Abraço!

- Fal..

Já desligou e nem quis ouvir o resto.

Logou no sistema e foi conferir os emails pra começar a trabalhar. Vida de estagiário na área de TI não é fácil... é muita gente que reclama que o computador não liga e não confere se está ligado na parede, problemas de internet mas com o cabo de rede desconectado e etc.. Depois foi hora de pegar fila pra almoçar, fila pra pagar, fila pro banco. Até que chega a mensagem:

“Véi do Céu! Arrumei um esquema muito bacana pra hoje. Nem vou te dizer onde é. Te espero na saída da faculdade 21h.”

Ao mesmo tempo em que dava preguiça, precisava sair, dar uma espairecida. Estava solteiro há seis meses, depois de um namoro de quatro anos com a Ju. As coisas deram certo no começo, mas com o tempo percebeu que as diferenças pesavam mais do que as afinidades. Ela gostava de sair, adorava acordar tarde, correr e era bem sociável. Já Gabriel era preguiçoso. Gostava de ficar em casa, até acordava cedo, mas apenas para ficar mais tempo à toa, e definitivamente não era sociável. Tirando Tomate, Bengala e Fred, conterrâneo e com quem dividia o apartamento, não fazia questão de interagir com muita gente.

Respondeu um “Só se você pagar as duas primeiras cervejas” e guardou o telefone no bolso, antes de voltar pro escritório. Pensou bastante sobre o fim da faculdade, a visita que faria aos pais no Natal e que a formatura mesmo seria no fim de janeiro, momento de pegar o diploma e pleitear um aumento de salário.

Mais trabalho, mais mensagens trocadas, ônibus, faculdade. Última aula.

E quando estava esperando Tomate, viu a Ju de longe. Trocaram olhares, acenos e ele jura que ela sorriu. Pouco, mas sorriu. O término foi doloroso, mas parecia inevitável. Algumas coisas na vida parecem ser pra sempre, mas se mostram apenas confortáveis com o passar do tempo para depois, infelizmente, se tornarem inconvenientes.

Com os fones no ouvido, e perdido em pensamentos, não viu quando uma mão encostou no seu ombro...

- Carai, Tomate, que susto! Tá doido?

- Te gritei, porra, e você não viu... Tá ouvindo o que?

- Música, né? Tava ouvindo Beatles aqui, nem vi você chegando...

- Mas que beleza! É um sinal do Universo, já que vou te levar pra ouvir “Raulzettles” hoje...

- Raulzettles?

- É, é uma banda que só toca Raul e Beatles, olha que bacana...

- Onde?

- Lá no Pub do Tadeu.

- Ah, cara, vai estar cheio, escuro, caro...

- E a Vanessa vai estar lá.

- Sem contar que tá quente demais!

- Lá tem ar condicionado.

- Agradeço, mas dispenso.

- Você me deve essa, cara, porque a Mari vai também e a Vanessa vai sobrar igual bombom Caribe na caixa da Garoto.

- Ah, bicho, na boa...

- E eu já confirmei nossos nomes.

- Saco! Tá bom!

Entraram no carro do Tomate e Gabriel traçou o plano: fica pra ver a banda, sai de fininho, pede um táxi e manda mensagem falando que teve que ir embora. Assim, todos ficavam felizes...

O Pub era bem bacana, com decoração inglesa e estava bem cheio. Tinham pessoas jogando sinuca, outras sentadas nos pouquíssimos lugares disponíveis, mas a maioria ficava em pé na pista ou no balcão.

Brindou a primeira rodada de cerveja com Tomate e jogaram conversa fora. Falaram do trabalho, da faculdade, de futebol, do recém lançado filme do Homem de Ferro, relembraram casos do passado, da viagem a Porto Seguro, de música. Já na quarta cerveja, o show ia começar.

A banda começou com A Hard’s Night dos Beatles, emendou um Rock do Diabo do Raul, seguida de Rock das Aranhas. No começo de Help, Tomate foi buscar mais cervejas, só retornando no fim de She Loves You.

- Gabriel, as meninas não vêm mais.

- Ah, você jura?

- Não acredito que a Mari me enrolou de novo!

Aluga-se, do Raul, ao fundo.

-Fala sério, Tomate, elas não viriam, né? Você inventou isso pra eu vir.

- Não, a Mari disse que viria.

- Esquece.

Eight Days a Week ao fundo.

- Vou pegar mais cerveja, Tomate, relaxa.

















Gabriel foi ao balcão e pediu mais duas cervejas. Cantarolou a música e foi fazendo um reconhecimento da área, olhando para os lados e vendo se via alguém conhecido.

Sociedade Alternativa.

Foi quando a viu. Aquele tom de pele maravilhoso, o cabelo anelado, linda. Inesquecível. “Não é possível”, pensou.

Nem sabe quanto tempo passou.

I'm Looking Through You.

Não conseguia tirar os olhos, pensar em outra coisa.

- Moço... moço... sua cerveja! – gritava em vão a garçonete no balcão.

Voltou à Terra quando Tomate o cutucou, falando algo que não prestou a mínima atenção e apontando pro celular. Só respondeu com um “Beleza”, passando por ele e indo ao banheiro.

Lavou o rosto e se olhou no espelho. Não acreditava que Débora estava ali, onde ele nem queria estar. Talvez fosse o “Universo”, como o Tomate disse mais cedo, uma coincidência apenas ou, quem sabe, outra oportunidade dada pela vida. Mas dessa vez seria diferente, estava solteiro. Mais do que isso, agora era um adulto, não mais uma criança num parque aquático ou um adolescente na praia com amigos. Era um adulto.

Saiu do banheiro e estava focado. Ironicamente, até com o peito estufado e a barriga encolhida.

Maluco Beleza.

- Gabriel.

Tinha certeza que em algum idioma antigo, Débora era sinônimo de vinho, pois ela estava mais linda do que estava há cinco anos, mas sabia que nunca poderia dizer isso sem que parecesse ridículo.

- Gabriel.

Apostava que estava cheirosa.

- Porra, Gabriel. Ta surdo? Olha quem tá aqui.

Foi quando percebeu que Tomate estava ali, mas sem saber se era há três segundos ou há três minutos. E com a Mari e a Vanessa.

- Eu não disse que elas vinham?

- Desculpa, meninas, mas eu tenho que ir ali.

- Cumprimenta, pelo menos.

- Oi, gente. Já volto.

“Ou não”, pensou.

Tente Outra Vez.

- Oi, Débora.

- Oi... Gabriel? É Gabriel, né? Nossa, quanto tempo...

- Pois é. Que coincidência.

- Tudo bem?

- Tudo, e com você?

- Tudo bem também.

- Tá morando aqui?

- Bem, tô querendo. Tô até com umas amigas aqui pra decidir isso.

- Bacana demais! Nem acreditei quando te vi de longe. Me diz aí, como anda a vida.

- Tá tudo bem.

Ele percebeu que não estava tudo bem. Não pra ele, pelo menos, já que ela estava um pouco seca.

-E tá gostando da banda?

- Tô. Bem legal.

- É, eu também tô achan...

- Leva a mal não, Gabriel, mas eu preciso ir ali.

Medo da Chuva.

- Peraí, queria conversar com você.

- Conversar o quê?

- Não sei, colocar o papo em dia. Nos entendemos tão bem em Porto Seguro.

- Ah, você achou? Porque não foi o que você me demonstrou.

- Ah, Débora, eu achei sim. A gente pass...

- Você me ignorou, Gabriel! Eu estava me abrindo com você e você simplesmente saiu pra não sei onde, me deixou sozinha e nem sequer se despediu direito.

- Ah, aquilo! Bom, você estava namorando e estava conversando com ele no telefone. Pensei que...

- E daí, cara? Eu estava me abrindo pra você! Estava conversando com você!

- Desculpa, eu não sabia que is...

Yesterday.

- Tá bom, Gabriel, passou. Me deixa ir agora.

- Peraí.

E ele a puxou pela mão. Pela primeira vez, se tocaram e ele percebeu que ela estava tremendo. Ou era ele, não sabia. Mas não queria soltá-la mais.

- Olha, Débora, me desculpa, tá?! Eu estava confuso, não sabia o que fazer. Você namorava, eu estava vendo uma possibilidade com uma menina do meu colégio que eu gostava há anos e... bom, eu não estava preparado para que aquilo que vivemos, tá!? Fiquei confuso, era adolescente, me desculpa.

- Gabriel...

- Sério, eu também não estava preparado pra te ver hoje e...

- DÉBORA??

- Oi, Tomate!

E as mãos se soltaram.

- Caramba, mulher, como você tá linda! Que coincidência você aqui!

- Pois é, também achei!

Gabriel colocou a mão no rosto, olhou para os lados buscando uma arma para matar o Tomate ou alguém para fazer isso por ele.

- É hoje que o Gabriel, não dorme...

E o rosto dela ficou vermelho.

- Beleza, Tomate. O que você quer? Tô conversando com a Débora aqui...

- Foi mal, mas tô indo embora com a Mari. A Vanessa está querendo ir embora e eu vou levá-las. Como você tá de carona comigo vim te chamar.

- Pode ir, Gabriel.  – disse Débora.

- Não, vou ficar. Pode ir, Tomate.

- Tá bom, então! Tchau pra vocês.

Something.

Gabriel despediu de Tomate e voltou a atenção pra ela que acenava pra Tomate.

- Olha, Débora, me desculpa mesmo.

- Tudo bem, Gabriel.

- E desculpa pelo Tomate. Você se lembra dele, né?

- Claro.

- Ele é sem noção assim mesmo, mas é gente boa.

- É verdade o que ele disse?

- Que eu tô de carona? É sim.

- Não, que hoje você não dorme? rs

Foi a vez do rosto de Gabriel ficar vermelho. Coçou a cabeça, olhando pra baixo e não sabia o que fazer.

- Bom, não sei. Mas que eu vou demorar, eu vou.

- Débora, vamos? A Paulinha tá passando mal e eu tenho que levá-la pra casa. – Interrompeu uma amiga de Débora.

 - Desculpa, Gabriel, mas tenho que ir.

- Tudo bem.

E começou a tocar Let It Be ao fundo. Let It Be.

Quando ela estava indo, ele a puxou pela mão e a beijou. Desesperadamente.

O Dia em que a Terra parou.

Sinos tocaram, as pernas bambearam e então se soltaram.

- Desculpa, Débora, mas eu não resisti.

Ela não respondeu. Apenas olhou para o chão e ajeitou seu cabelo atrás da orelha. E passou seu número pra ele.

Se despediram e ele sentou no balcão. Ainda não acreditava no que aconteceu.

- Moço, você é o Gabriel, né?! – perguntou a garçonete atrás do balcão.

- Sim, por quê?

- Um amigo seu que foi embora deixou uma cerveja paga pra você. Disse que se você não beijasse a menina com que estava conversando era pra eu quebrar essa garrafa na sua cabeça. Mas caso beijasse, era pra você bebê-la.

- Agradeço. Obrigado.

Bebeu a cerveja enquanto pagava a conta e foi embora antes do show acabar.

Quando o táxi arrancou, sorriu quando ouviu a banda tocando Here Comes the Sun.

Realmente, não iria dormir.


Este texto é parte da série "Quatro Estações do Verão". Para ler Inverno, clique aqui. Para ler Primavera, clique aqui.

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